quarta-feira, 4 de julho de 2012

Uma carta de pai para filho

     Há poucos dias, terminei de traduzir as cartas de Sacco e Vanzetti, dois anarquistas italianos que foram acusados, nos Estados Unidos, por um crime que não cometeram, tendo passado sete anos presos e enfrentado julgamentos vergonhosos que terminaram com sua condenação à morte. E foram executados por eletrucussão em agosto de 1927, não pelo crime de que eram acusados, mas pela intolerância reacionária, o preconceito assassino e a burrice direitista, infelizmente ainda muito presentes nos dias de hoje. Sua história não pode ser esquecida e tem muito a dizer ao Brasil de hoje. Por isso minha tradução deve ser publicada ainda neste ano.
     As cartas de Sacco e Vanzetti, escritas na prisão, constituem um depoimento comovente, ao mesmo tempo que contêm profundas reflexões sobre política. Uma delas, que trata da relação entre pai e filho, me toca muito diretamente e gostaria de reproduzi-la aqui. Cinco dias antes de sua execução, debilitado por uma longa greve de fome em protesto pela ignomínia do processo que resultou na sua condenação à pena capital, Nicola Sacco escreveu esta carta para seu filho Dante, então com 13 anos:

18 de agosto de 1927. Penitenciária Estadual de Charlestown

MEU QUERIDO FILHO E COMPANHEIRO:

Desde a hora em que o vi pela última vez, tenho pensado em lhe escrever esta carta, mas a extensão de minha greve de fome e a ideia de que eu não conseguiria me expressar adequadamente me fizeram adiar este propósito.
Há alguns dias, encerrei a greve de fome. Tão logo o fiz, pensei novamente em lhe escrever, mas achei que não teria força suficiente para terminar a carta de uma só vez. No entanto, faço questão de que ela esteja escrita antes do momento de nos levarem para a sala de execução, pois estou convicto de que farão isso assim que a Justiça se recusar a nos proporcionar um novo julgamento. Dessa maneira, entre sexta-feira e segunda-feira que vem, se nada de novo ocorrer, vão nos eletrocutar logo após a meia-noite do dia 22 de agosto. Portanto, aqui estou eu com você de novo, pleno de amor e com o coração aberto, tal como ontem.
Nunca pensei que nossas vidas inseparáveis pudessem se partir, mas parece que estes sete anos dolorosos fizeram isso conosco, apesar de não terem mudado o grande amor que nos une. Ele permaneceu tal como era. Mais. Diria que o sentimento inefável e recíproco que nos une é hoje maior que no passado. É de fato um amor imenso, pois, como se pode ver, ele está firme não somente nos momentos de alegria mas também nos momentos de tristeza. Lembre-se de uma coisa, Dante: nós temos demonstrado isso e, modéstia à parte, temos orgulho desse sentimento.
Como temos sofrido durante este longo calvário! Nós protestamos hoje tal como protestamos ontem. E protestaremos sempre pela nossa liberdade.
Se encerrei a greve de fome dias atrás, foi porque em mim não havia mais sinal de vida. Ontem protestei com uma greve de fome como hoje protesto pela vida, para não ser assassinado.
Eu me sacrifiquei tanto porque queria voltar a abraçar sua irmãzinha Ines, sua mãe, nossos amigos e nossos companheiros de luta. Hoje, meu filho, a vida começa a ser revivida lenta e calmamente, mas sem horizontes, com tristeza e com a perspectiva da morte.
Meu menino, após sua mãe ter me falado tanto em você e de eu ter sonhado com você noite e dia, foi uma enorme felicidade encontrá-lo finalmente e termos conversado como sempre fazíamos. Eu lhe disse muita coisa durante a visita e ainda tenho muito a lhe dizer, mas pude ver que você seguirá sendo o mesmo rapaz afetuoso e leal a sua mãe, que tanto o ama. Não quero mais ferir a sua sensibilidade, pois tenho certeza de que continuará a ser a mesma pessoa e se lembrará do que eu lhe disse. Mas o que vou lhe dizer agora vai mexer com seus sentimentos. Por favor, não chore, Dante, pois muitas lágrimas têm sido derramadas, sua mãe as tem chorado durante estes sete anos, mas elas em nada melhoraram as coisas. Sendo assim, meu filho, em vez de chorar, seja forte a ponto de poder consolar sua mãe. Quando quiser distraí-la nas horas de desalento, vou lhe dizer o que fazer. Leve-a para dar um passeio pelo campo, colhendo umas flores aqui e ali e descansando à sombra das árvores, sentindo a harmonia dos córregos e a tranquilidade da mãe natureza. Ela vai gostar de fazer isso, e vocês haverão de estar bem. Lembre-se sempre de uma coisa, Dante: no jogo da felicidade, não a conquiste somente para você, esteja do lado dos fracos que também a procuram e ajude-os, nunca se esqueça dos humilhados e ofendidos, pois entre eles você encontrará seus melhores amigos. Eles são os companheiros que lutam e às vezes tombam tal como seu pai e Bartolo lutaram e tombaram para que a liberdade fosse uma prerrogativa de todos os trabalhadores. Essa luta por uma vida digna se fará com amor, e você será verdadeiramente amado.
Sua mãe me contou as coisas que você andou dizendo durante os dias terríveis em que eu estava no corredor da morte. Fiquei muito feliz com o que ouvi, pois suas falas mostram que você será o rapaz que eu sempre sonhei ter como filho.
Portanto, aconteça o que acontecer nos próximos tempos, mesmo se nos matarem, você não deve se esquecer de olhar para os companheiros de luta com gratidão, tal como olha para as pessoas mais queridas, pois eles o amarão tal como amam cada um dos camaradas que tombam pelo caminho. Seu pai, que é tudo na vida para você, seu pai, que tanto o ama, seu pai que conhece nossos companheiros e sua nobre lealdade (que é também a minha), o sacrifício supremo que eles estão fazendo pela nossa liberdade, seu pai, que lutou ao lado deles e sabe que eles são a última esperança de que sejamos salvos da eletrocussão, seu pai sabe que você compreenderá no futuro a grandeza de lutar com os pobres contra os ricos por segurança e liberdade, meu filho.
Pensei muito em você quando estava no corredor da morte. Às vezes me chegavam as vozes das crianças no playground, onde tudo era vida e alegria de estar livre. Isso a poucos passos das paredes que continham a agonia de três almas dilaceradas. Essas vozes me lembravam você e sua irmã Ines, e eu desejava vê-los a todo instante. Mas foi melhor que você não tenha vindo me visitar na antessala da morte, pois, do contrário, teria assistido ao horrível espetáculo de três homens em agonia esperando para ser eletrocutados, e eu não sei qual seria o efeito disso num menino da sua idade. Se você não fosse muito impressionável, no entanto, a memória desse infame acontecimento poderia até ser algo muito útil no futuro, quando você puder exibir para o mundo a vergonha deste país no que se refere a essa perseguição cruel e a essa morte injusta. Sim, Dante, hoje eles podem crucificar nossos corpos, como estão fazendo, mas não podem destruir nossas ideias, que permanecerão vivas para a juventude do futuro.
Quando falei em três homens em agonia, me referia também a um homem que estava conosco, cujo nome é Celestino Madeiros. Ele deve ser eletrocutado no mesmo dia que eu e Vanzetti. Madeiros já havia estado por duas vezes naquela famigerada sala de execuções, que devia ser destruída pelas marretas do verdadeiro progresso. Aquele lugar abominável envergonhará para sempre o futuro dos cidadãos de Massachusetts. Deviam jogá-lo no chão e construir uma fábrica ou uma escola para esse monte de órfãos que estão por aí.
Dante, mais uma vez lhe digo para amar e consolar sua mãe e as outras pessoas queridas. Tenho certeza de que com a sua coragem e a sua bondade elas se sentirão menos desoladas. E nunca deixe de amar seu pai, pois... ah, meu filho, como eu tenho pensado em você.
Mande as minhas melhores lembranças, meu amor e meus beijos para a Inesinha e para sua mãe. 

           Com o abraço mais afetuoso de

                                   SEU PAI E SEU COMPANHEIRO

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