quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dos sentimentos

     Relendo algumas passagens das coisas que lhe escrevo por aqui, me dou conta de que às vezes o sentimento transborda. Mas não me importa. A esta altura da vida, depois de tudo o que já passei, não tenho nenhum medo de parecer ou mesmo de verdadeiramente ser sentimental. Se num ensaio sobre algum tema literário, escrito em conexão com meu trabalho, tenho de tentar manter certo distanciamento, com você mantenho toda a proximidade possível. Jamais serei contido nem buscarei uma frieza sofisticada quando o assunto for meu filho. Aliás, para ser sincero, não faço isso em nenhuma outra situação. Pertencemos a um povo incandescente de paixão, que costuma viver de paroxismo em paroxismo. Isso tem sido nosso céu e nosso inferno. Mas antes ser assim a representar um refreamento afetado de bom-tom.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Um resfriado

     Um tanto de repente, diante das mudanças do tempo e principalmente pelo fato de pegar metrô bastante cheio todas as manhãs, peguei um forte resfriado que está me chateando muito. Quando chega a noite, as coisas pioram e o mal-estar aumenta. Nessas horas, sinto ainda mais saudade do Brasil, onde estão minha família e meus amigos; onde está você. Quando não nos sentimos bem vivendo no estrangeiro, passamos a ter uma consciência ainda maior de nossa solidão e de nossa precariedade neste mundo. Porém já estou me tratando, e o ciclo do vírus que adquiri haverá de se completar em breve.

domingo, 20 de outubro de 2013

No primeiro dia

     Não me lembro se é de Millôr Fernandes esta frase: "Só há uma coisa mais indefesa que um recém-nascido: um recém-pai". Ela me veio à memória agora há pouco, quando repassava algumas fotografias na tela de meu telefone e vi uma do dia de seu nascimento, tirada por mim. Você está deitado numa balança, em seu primeiro minuto neste mundo, chorando fortemente e se debatendo com braços e pernas. O painel do aparelho mostra 3,625 kg. Me recordo de que, após limparem-no e cobrirem-no com um manto verde, peguei-o no colo, ainda meio sem jeito. 
     Há também uma foto daquele dia em que estou recostado na cama, com você, pequenino, aninhado sobre meu peito. Em geral sou visto como uma pessoa forte (e tenho tido de sê-lo realmente). Mas naquela manhã de domingo ensolarada em Belo Horizonte, num momento crucial de minha vida, com meu bebê ali dormindo sobre mim, eu me sentia tão indefeso quanto você, ou mais. Porém feliz.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Uma reviravolta da vida

     Ontem recebi um telefonema da chefia do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Cambridge, que é uma das melhores e mais prestigiosas do mundo, me convidando para trabalhar lá dois dias na semana. Hoje fui visitar a instituição e me reunir com as pessoas responsáveis pelos Estudos Brasileiros. Assinei um contrato por apenas um ano acadêmico e darei poucas aulas, apenas nas segundas e terças-feiras. De todo modo, jamais imaginei que um dia seria professor em Cambridge.
     Como sempre dormirei por lá de segunda para terça daqui para frente, aproveitarei os fins de tarde para correr às margens desse riacho que passa pelo campus. E sempre nos imaginarei jogando bola por esses amplos espaços abertos, com gramado muito bem cuidado.
     Obviamente estou feliz por estar bem aqui e por ver meu trabalho valorizado e respeitado, ainda mais depois de tudo o que passei no Brasil, muito especialmente entre os anos de 2006 e 2010, quando fui muito achacado, tendo, de quebra, de enfrentar a falta de perspectivas e uma situação financeira muito precária. Mas o pior não foi isso. Eu sabia que me reergueria. O pior foi ter sido obrigado a me manter a distância de você. Esta foi (e ainda tem sido) a minha grande perda.

sábado, 12 de outubro de 2013

Individuum

     Relendo Nietzsche agora há pouco, em Aurora, pensei nas muitas vezes em que o tenho aconselhado a ser você mesmo, a preservar sua individualidade e a jamais fazer parte de qualquer tipo de rebanho humano. No caso, o grande pensador tratava da ideologia do trabalho como algo desumanizador. Escreve ele:

     Na glorificação do “trabalho”, nos infatigáveis discursos sobre a “bênção do trabalho” vejo o mesmo pensamento secreto que nos louvores dirigidos aos atos impessoais e úteis a todos: a saber, o medo de tudo o que é individual. No fundo, sentimos hoje, perante o trabalho – queremos sempre significar com esta palavra o duro labor do nascer ao pôr do sol –, que ele constitui o melhor dos polícias, que segura os homens pelas rédeas e se dedica a entravar poderosamente o desenvolvimento da razão, dos desejos, do gosto da independência. Justamente porque consome uma quantidade extraordinária de energia nervosa e a subtrai à reflexão, à meditação, ao sonho, aos desejos, ao amor e ao ódio, apresenta à vista um objetivo mesquinho e assegura satisfações fáceis e regulares. Assim, uma sociedade em que se trabalha contínua e duramente, terá maior segurança: hoje em dia adora-se a segurança como se fosse a suprema divindade. – E depois! Horror! O próprio “trabalhador” tornou-se perigoso! O mundo formiga de “indivíduos perigosos”! E atrás deles o perigo dos perigos – o individuum!

     Espero vê-lo, ao longo da vida, a se dedicar àquilo de que gosta, honrando seu tempo com aquilo que lhe dá prazer e que faz com amor, mesmo se o que estiver fazendo não for algo muito popular, muito útil nem muito rentável. Que inclusive não abra mão do honorável tempo de não fazer nada. Quase sempre é na lentidão, no silêncio, no intervalo de grandes agitações que as coisas mais significativas da vida acontecem. Portanto, nunca tenha medo de ser uma pessoa autêntica, o indivíduo a que se refere o filósofo.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Um poema de 2006

     Revirando meu computador no fim de semana, encontrei um poema que escrevi quando você tinha um ano de vida, em 2006. Para meu azar, dei-lhe o título de “O filho eterno”, expressão recorrente no meu texto e que pouco tempo depois apareceria como título de um excelente romance de Cristóvão Tezza sobre a relação de um pai com um filho com síndrome de Down. Nele eu trato de nossa relação, de sua liberdade e sua pureza, arrematando-o com uma expressão que dialoga com o final de um poema de Drummond sobre um filho que ele não chegou a ter. Aí vai o meu texto, cuja leitura me emocionou nesta longa distância em que sou obrigado a manter de você, consciente que estou de tudo o que estamos perdendo:

     Passeando nos meus ombros
     o filho eterno olha para frente
     – a vida inteira diante de si.

     Sobre Deus e o mundo conversa
     o filho eterno, distribuindo por quês
     para cada pequeno mistério.

     Os olhos encantados, a vida plena
     o filho eterno atira pedras na água
     arrebatado pelas ondulações.

     Corre o filho eterno pelos campos
     pelas ruas, pelo tempo, pelos sonhos
     – atravessa horizontes, fura o céu.

     Brinca nos meus pensamentos
     Ri seu riso solto no meu coração
     O filho eterno faz-se por si mesmo.

domingo, 6 de outubro de 2013

Flores, cores, odores

     Aqui, estamos já no outono, em transição para o inverno. Tivemos uma primavera e um verão muito agradáveis e muito bonitos. Desde março ou abril, a cidade se povoou de muitas cores e muitos perfumes. Eu sempre passava diante dessas janelas em Euston, na área central, onde morava até recentemente. Muitos jardins por toda a cidade estavam exuberantes. Mas o tempo corre, e as estações vêm e vão. Outra vez recomeçará uma longa temporada de frio.
     Sempre que passo por lugares assim, penso em você e gostaria de tê-lo a meu lado numa longa e folgada conversa em que pudéssemos borboletear por assuntos diversos na alegria de estarmos juntos. Que a crueldade e o prosaísmo da vida nunca matem em você o lirismo, a paixão e a simplicidade.