sábado, 29 de novembro de 2014

Acidentes e planos para o fim do ano

     Conversamos  ontem  à  noite,  e  eu  soube que você está no hospital, após um acidente na escola. Outro menino bateu a cabeça contra a região da sua boca, causando-lhe um grande corte no lábio superior. Fiquei preocupado com você e desejei estar aí. Iria visitá-lo e dar-lhe o meu abraço, animando-o.
     Infelizmente  não  nos  encontraremos  neste Natal que se aproxima, pois terei de viajar ao Oriente mais uma vez, e minhas atividades na universidade onde trabalho recomeçarão assim que eu voltar de lá. Mas estaremos juntos em abril, quando poderei passar um mês entre São Paulo e Minas Gerais.
     Estou  com  muita  saudade  de  você.  Em dezembro devo ir à Tailândia e à Índia. Serão viagens a lugares fantásticos, mas, como sempre acontece, sentirei sua falta e imaginarei o que você diria diante dos templos, das celebrações, dos tipos humanos, da comida local.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Campeão do Brasil


     Na noite de ontem, o Galo tornou-se campeão da Copa do Brasil derrotando na finalíssima, no Mineirão, o nosso maior rival, um time azulzinho de Belo Horizonte, por 1x0, gol de Diego Tardelli. Fiquei até tarde acompanhando o primeiro tempo da partida, que começou à meia-noite no horário daqui. Valeu a pena, pois nosso gol saiu aos 47 minutos do primeiro tempo.
     Durante  todo  o  dia  de  ontem  trocamos  mensagens pelo telefone, na expectativa de o Atlético ganhar mais um título de campeão. E você me disse que iria assistir ao jogo pela televisão, em São Paulo, vestindo sua camisa do Galo.
     Fico  feliz  pelo  fato  de  o  time  que  nos  une  estar muito bem, com muitos jogadores inspiradores, vários deles com 19, 20 anos.
     Me  lembro  de  algumas  oportunidades  que  tivemos  de assistir a jogos do Galo juntos, vestindo a camisa. Quando nosso time fazia gol, nos abraçávamos e dizíamos em coro, punhos fechados: "Raça! Raça! Raça!"
     Não  pude  ficar  acordado  para  acompanhar  o  segundo tempo do jogo de ontem. Mas logo cedo, quando acordei. Corri para o computador, para verificar o resultado. Galo 1x0 e campeão. A primeira coisa que fiz foi enviar uma mensagem para o seu telefone: "Raça! Raça! Raça!".

domingo, 23 de novembro de 2014

Retratos num domingo de chuva


     Logo antes do fim de semana, trouxe para casa um livro que mantinha em meu escritório na universidade há algumas semanas. Trata-se de uma série de retratos de Steve McCurry, o célebre fotojornalista da revista National Geographic. Neste domingo muito chuvoso e muito frio, não saí de casa, como costuma acontecer, pois é o dia de aproveitar as muitas atrações culturais de Londres, a vitalidade de seus parques ou mesmo simplesmente perambular pelas ruas. Mas valeu a pena ficar aqui, pois as imagens de McCurry me tocaram fundo. As pessoas ali mostradas vivem em muitas partes do mundo, a maioria em regiões pobres e que enfrentaram guerras e outras calamidades nas últimas décadas, em especial no Oriente. 
     Os  muitos  tipos  de  fisionomia,  cor  de  pele, formato de rosto, conformação corporal ali expostos mostram a evidente beleza e dignidade do ser humano, a despeito das muitas referências à violência e ao sofrimento por que várias pessoas ali retratadas passaram. Três coisas me chamaram a atenção no livro: a beleza muito original dos afegãos, a elegância da África negra e as muitas crianças em situações extremamente desfavoráveis. Os olhos de alguns dos fotografados me fizeram permanecer diante de suas fotos por vários minutos, imaginando seus sentimentos no instante em que sua imagem foi capturada e também sua história de vida. Ao contrário do que a publicidade e o liberalismo contemporâneo nos dizem, há muitas formas de ser bonito e muitas alternativas para ser feliz, esse imperativo do nosso tempo. Essa amplitude dos horizontes da vida é, sem dúvida, muito enriquecedora.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Da gagueira

     Hoje  um  aluno  do  King's  College  bateu  à  porta  de meu escritório e pediu para conversar comigo sobre o que deve fazer para conseguir realizar estudos de pós-graduação no Brasil. Logo no início da conversa, percebi que ele era gago. Aí está uma coisa curiosa: moro há três anos na Inglaterra, morei quase dois anos nos Estados Unidos e nunca tinha visto um gago falando inglês.     
     Para  Eugene  O'Neill,  deixamos  sempre  tantas coisas por dizer às pessoas próximas de nós que a gagueira acaba por se tornar nossa "eloquência nativa" num mundo em que vemos tudo como se estivéssemos envoltos por uma grossa neblina. Nelson Rodrigues, cujo pai era gago, diz em suas memórias que cresceu com a ideia de que os gagos é que estão certos, e os bem-articulados, errados. Já Noel Rosa escreveu um famoso samba sobre um gago apaixonado tentando expressar sua dor de cotovelo após ser abandonado, terminando seu trôpego desabafo com uma maldição à mulher antes querida. Aristóteles e Machado de Assis eram gagos...
     Não  sei  por  que  entrei  hoje  no  tema da gagueira. Talvez porque, como O'Neill, eu tenha pensado em tantas coisas não ditas entre nós, em virtude da separação e da distância. Talvez porque estes fragmentos não passem de um gaguejar em meio à névoa que nos encobre neste mundo tão louco, tão injusto e muitas vezes tão imprevisível, tão difícil de ser expresso na linguagem humana, que é tão precária e tão incapaz de capturá-lo.

sábado, 15 de novembro de 2014

Futebol menino


     Fui  hoje  cortar  o  cabelo  na  região do Wandsworth Common, onde morei por um breve período em meados do ano passado. Ao cruzar o parque na manhã fria de outono, vi que vários grupos de meninos mais ou menos de sua idade se preparavam para jogar futebol. Naquele momento, pensei em duas coisas. Em primeiro lugar, imaginei que se você estivesse ali ficaria animado e muito falante. E jogaria muito melhor que os inglesinhos, especialistas em chutões e correrias. Sei o quanto você tem boa técnica e habilidade com a bola. Faria grandes jogadas e muitos gols, e eu ficaria orgulhoso de você. 
     Mas  ao  passar  por aquele  gramado tão bem cuidado, pelos campos com traves e marcações, técnicos e todo um suporte de instrutores, muitas bolas de primeira categoria, meninos já equipados como jogadores profissionais, pensei em minha própria infância e em como comecei a jogar futebol no campinho de terra vermelha do bairro São Sebastião, em Divinópolis (que nem sei se ainda existe), quase sempre descalço, com péssimas bolas de borracha, solto e sem instrução de técnico, exposto a bate-bocas e brigas relativamente frequentes. Somente um pouco mais tarde entrei para um clube, ainda precário, onde passei a disputar campeonatos e a sonhar em ser jogador profissional.
     Você  faz  parte  de  outro  tempo,  de  outra realidade cultural e mesmo espacial, possui muito melhores condições materiais do que eu tinha na sua idade. Me alegro que as coisas sejam assim. Mas é sempre uma felicidade quando vejo nossas muitas fotos juntos, com você ainda bem pequeno, no campinho da Sidil, perto de onde minha mãe possuiu uma casa há alguns anos. Ali você de fato começou a jogar, e eu fui seu instrutor nos fundamentos básicos do jogo. 
     Por causa das circunstâncias da vida, atualmente só o encontro duas vezes por ano, quando vou ao Brasil. É sempre uma felicidade levá-lo para o campus da USP, onde passamos algumas horas jogando juntos. É como se isso nos resgatasse da saudade e da vida que estamos perdendo neste distanciamento forçado.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A praça é do povo em Marrakech


     Estou passando alguns dias no Marrocos. É a primeira vez que venho à África. Hoje caminhei bastante pelas ruazinhas estreitas da parte antiga de Marrakech, um verdadeiro labirinto onde me perdi várias vezes. Até que cheguei à praça Djmeaa El-Fna, que é um lugar muito peculiar onde se aglomera, o dia todo, uma variada multidão. Além dos visitantes, há vendedores de toda sorte de comida local, encantadores de serpentes, músicos berberes, artistas de rua, contadores de história, macacos amestrados, pequenas encenações teatrais, comerciantes de bugigangas, mendigos, crianças trabalhando, cães e gatos vagabundos, camelos e toda uma ambientação muito vívida. Se uma girafa me aparecesse caminhando tranquilamente por ali, não me surpreenderia. É como se a gente voltasse a uma praça da Idade Média.
     Tenho  acordado  sempre  muito  cedo por causa de um canto de louvor a Allah e um chamado aos muçulmanos para as primeiras orações do dia. Todas as mesquitas realizam o chamado em uníssono através de um sistema de alto-falante.
     Às vezes até chegam conversando comigo em árabe, pois me pareço com eles. Ainda mais pelo fato de eu estar usando um roupão típico daqui. Gosto desse burburinho de pessoas que se encontram e de uma cultura não massificada nem padronizada pelo modo de vida americano. As cores, os sabores, os sons, os cheiros, a paisagem, tudo remete a algo original e a uma cultura muito forte. É um país pobre, com graves problemas sociais. Me toca especialmente quando vejo crianças e velhos muito desamparados. Mas é um cultura autêntica, um povo digno e orgulhoso do que é e do que possui.
     Ontem tomei um ônibus e fiz uma viagem de quase três horas até a cidade litorânea de Essaouira. No caminho, fui vendo a paisagem árida e as pequenas fazendas muito esparsas pelo caminho, com vários pequenos pastores de rebanhos de cabras e carneiros. Em Essaouira também encontrei toda uma agitação de pessoas se encontrando, conversando, trocando experiências e lutando pela vida. 
     Se você estivesse aqui, iríamos nos perder no labirinto da cidade velha de Marrakech, experimentar a comida dos árabes, caminhar pela zona portuária de Essaouira, ver os encantadores de serpente em suas peripécias com najas e cascavéis, contemplar as cordas, os sopros e as percussões da música berbere. 
     Há  alguns  dias  você  me  contou  que sua nota em Geografia, na escola, foi 96, realmente um feito impressionante que me deixou muito orgulhoso. Só falta agora completar suas lições com perambulação pelas belezas e misérias deste mundo, vivenciando a Geografia para além das páginas dos livros, o que é uma experiência ainda mais profunda.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Ruídos

     Em  seu  livro  Parerga  e  Paralipomena,  Schopenhauer escreve todo um capítulo sobre os ruídos. Segundo o filósofo alemão, o ouvido possui uma natureza passiva, recebendo, na maioria das vezes, sons que não escolhemos e que não queremos ouvir. Estes, para ele, eram profundamente irritantes. Contudo, sendo um homem muito sensível à música, considerava que ela é capaz de provocar um efeito tão imediato, inefável e penetrante em nosso espírito que chega a resultar inclusive na elevação de nosso ânimo. Assim, essa forma de arte seria, para ele, superior às outras, pois, enquanto estas apenas reproduzem sombras, a música daria expressão a essências.
     No  entanto,  a  condição  passiva  do  ouvido  possuiria também um lado muito negativo. A seu ver, isso ocorreria, por exemplo, quando nossa capacidade de pensar está em ação e sofre uma interrupção por parte de um som inesperado. Isso causaria um enorme transtorno, já que todo o encadeamento de nossas ideias seria rompido pelo ruído intruso e impertinente, e nosso pensamento ficaria paralisado. Schopenhauer abominava tanto esses barulhos que chegou a escrever que "a quantidade de ruído que uma pessoa é capaz de suportar sem se incomodar é inversamente proporcional a sua capacidade intelectual e pode ser considerada como uma medida aproximada de suas faculdades mentais".
     Me  lembrei  desse  texto  hoje,  no  fim  da tarde, quando me exercitava correndo pelas margens do rio Tâmisa e passava junto a um heliporto que fica em Battersea, o bairro onde moro. De imediato devo dizer que detesto helicópteros justamente pelo ruído insuportável que emitem. Chego a evitar passar por perto daquele heliporto em alguns horários de mais movimento de pousos e decolagens. Me recordo também de que em São Paulo, morando no Butantã, nas proximidades da Marginal Pinheiros, o barulho dos helicópteros de emissoras de rádio e televisão, especialmente no início da manhã e no fim da tarde, era realmente uma tortura. E o excesso de ruído emitido por todo lado na cidade talvez explicasse porque eu costumava me sentir frequentemente exasperado na Pauliceia.
     Nunca  tolerei,  desde  a  adolescência, os clubes noturnos onde a juventude se reúne para ter seus ouvidos estuprados, geralmente por uma música de péssima qualidade. Nesses lugares, não se pode sequer conversar, pois ninguém ouve ninguém e há de se gritar muito alto para tentar se fazer ouvir. Certamente Schopenhauer tem razão quanto à capacidade intelectual dos que não se incomodam nessa situação infernal.
     Neste  momento  mesmo,  enquanto  escrevo, o fluxo de meus pensamentos é interrompido por explosões de fogos de artifício na minha vizinhança, não sei a propósito de quê. Há já umas três horas que tais ruídos assediam esta região a cada cinco minutos. Haja paciência!
     Sei  que  você  é  um  menino  calmo  e  educado,  muito ligado à leitura e à música, possuindo boa familiaridade com o violão. Espero que continue nessa trilha e que o silêncio, as lentas mas profundas conquistas, a capacidade de concentração sejam qualidades que venha a cultivar por toda a vida.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O outono e a instabilidade


     Estamos no auge do outono no hemisfério norte. O tempo está instável, com dias amenos e dias muito frios, dias de sol e dias de chuva praticamente sem transição de uns para os outros. As folhas das árvores estão assumindo vários tons de amarelo e vermelho, sendo que muitas já começam a cair. Os dias estão escurecendo mais cedo, e tudo é preparação para a chegada do inverno.
     Neste momento, já desejo a chegada da segunda semana de dezembro, quando ficarei longe do frio por um mês. Mas infelizmente é provável que eu não possa ir ao Brasil, tendo de partir para a Ásia por algumas semanas. Assim, terei de reencontrá-lo somente alguns meses mais tarde, em abril. Em meados de janeiro estarei de volta a Londres, já em pleno inverno, para enfrentar mais uma vez o frio terrível que faz aqui. 
     Tenho sentido a sua falta, especialmente porque não temos tido contatos muito frequentes. Sei que você está bem, mas eu seria mais feliz se pudéssemos ao menos conversar um pouco uma vez por semana. Contudo, bola pra frente e vamos enfrentar honestamente os desafios que a vida nos propuser.